quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Um obstáculo inesperado

Uma observação preliminar: a Ética não é a bicicleta! Não pode ser, ou teríamos de admitir que o equilíbrio nos é dado pelo veículo, que por si mesmo necessita de nós, ciclistas, ou de apetrechos para se manter de pé. Se metáfora de algo, a bicicleta o seria do próprio mundo: é nele que precisamos manter o prumo, é ele que cai sobre nós ou nos derruba se não compensamos apropriadamente suas tendências. E quem nos auxilia nesse esforço não é senão D. Ética, conselheira exemplar, irreparável, pois toda Ética necessitada de reparos - já vimos isso no texto de abertura desta série - é na verdade uma Moral.

Creio, assim, haver respondido ao comentário do amigo AC e sua poética metáfora. Com certeza quis com ela corrigir o curso da que inventei (apressadamente, como já fiz notar), na qual reconheço haver nada de brilhante, sendo seu maior pecado, ao contrário da proposta por AC, o de carecer da desejada poesia. Mas se posso criticá-la por mirrado apelo estético, invoco a seu favor a precisão. Ela diz melhor da intenção de relatar o quanto me vem à cabeça quando trafego pelo labirinto de intolerância que vimos criando para nós à guisa de abrigo, a metrópole. Trata-se, o mais das vezes, de meros estalos sacados nos contratempos de decisões apressadas com vistas a evitar o pior. O pior para mim, o pior para outrem.

O que é o ciclista em hora de rush? E nos fins de semana? Em ambos e em quase todos os outros casos imagináveis é ninguém. Se está no meio da rua, empurram-no os automóveis para a calçada e aí os pedestres - não todos, é bem verdade e ainda bem - insistem em lhe obstar o caminho ou encaram-no como a um vagabundo ou mesmo fascínora. Para passar pela calçada, manda a lei, tem de apear-se. É justo, visto haver quem manobre mal seu veículo. E o que é um ciclista desmontado? Nada, igualmente: alguém empurrando uma bicicleta (andaria melhor não conduzindo nada com as mãos).

Tudo, entretanto, parece amenizar-se com a visão esperada da ciclovia. Então é só aguardar o sinal abrir e encontrar uma brecha desprezada ou ignorada pelos motoristas para atingir seu éden, pensa o ciclista, onde poderá dialogar com iguais (semelhantes, melhor dizendo) e finalmente desenvolver velocidade constante. Mas ainda tem de evitar o automóvel arremetendo-se sobre ele ao dobrar a esquina, umas hábeis pedaladas e... a ciclovia! Já não faz caso do monóxido de carbono descarregado da via lateral e imagina mesmo que lhe refresca a cara a brisa do mar. Tem alguma pressa, compromisso, mas um passo furtivo de uma senhora resfolegante - e entrada nuns quilos a mais - o força a desviar-se para a esquerda, onde não por acaso se aproxima outra bicicleta em sentido contrário (ou seria no mesmo sentido, tentando ultrapassá-lo?), de quem escapa numa manobra elástica para de imediato dar com o casal de corredores, mãos dadas, gordinhos e saltitantes, ocupando pouco mais de dois terços das pistas.

Ora, qual o lugar do ciclista nesse mundo? Nenhum! Não tem o status dum motorista, que possui carro por ter pressa de honrar suas obrigações. Tampouco é um pedestre, corredor ou não, que, bem ou mal, está fazendo algo importante para si, como pegar o taxi, o ônibus ou cuidar da saúde - até topar com a próxima maionese de batatas. Um ciclista só pode estar-se divertindo, passando o tempo, pois a bicicleta nada tem de um veículo sério: desconfortável ao sol, incoveniente na chuva, é útil apenas para perturbar a vida alheia.

Tudo isto tem um significado, mais grave do que aquele que permitimos ou costumamos admitir. Ele se apresenta quando confrontamos o mundo como é com aquele que, de sã consciência ou por puro desencargo da mesma, dizemos querer e, claro, fingimos construir. A bicicleta é um dos pontos ideais donde vislumbrar a natureza humana como se apresenta: um pouco elevado, o suficiente para observar sem tomar-se por deus, e em condição de fragilidade, pois nem todos sabem, ainda bem, que para desconcertar um ciclista é bastante afastá-lo para o lado com a mão. De pouco adianta insultá-lo ou contestá-lo: a isto ele já se habituou.

Rio, 25/1/07

Waldemar Reis

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Ética de bicicleta


O leitor tem todo o direito de criar a imagem da senhora respeitável pedalando com algum jeito, muito cuidado, metida num jogging ou mesmo exibindo, muito à vontade e sem traço de cupidez, par de pernas apresentável já não escondendo as luzes aquareladas que o tempo dá à tez quando madura. Pode inclusive outorgar-lhe aquela superioridade espigando-se sobre o selim, perturbada somente pelos eventuais sobressaltos ao ter o caminho cortado pela trajetória de um celerado, seja ele criança, um idoso, o garoto do skate, o par falante.

Permito também, leitor, o seu embaraço caso lhe pareça excessiva a falta de cerimônia aqui usada, desde o título, para com senhora assim reservada a quem se flagrou no exercício de atividade hoje tida por recomendável para o desfrute da saúde adequada. Afinal, são igualmente prováveis o seu desconhecimento de semelhante personagem ou a vaga notícia de sua existência (quase sempre envolta num certo distanciamento), circunstâncias em que, manda o trato civilizado, é mister usar da formalidade.

Maior estranhamento deverá causar a notícia de tratar-se de mim mesmo quem conduz tão prosaico veículo, sendo inevitável o riso de mofa, embora discreto, dirigido ao travestismo em suas variadas faces. De modo igual não me causará constrangimento vôo assim incerto da imaginação, pois tenho em conta a precipitação havida na escolha de como chamar esta série de textos, e tampouco o ar de ironia do leitor ao conceber a mim como imbuído de suscetibilidades da fantasiosa dama ao trafegar pelo âmago dos mais comezinhos conflitos humanos expondo-se a céu aberto.

É, entretanto, como fica o ar da cada um de nós quando tem de enfrentar-se diuturnamente com os limites impostos pela presença recíproca e numerosa. Com desonrosas exceções, ao trafegar pelo espaço público incorporamos algo de D. Ética, em particular aquela expressão permanente de discretos assombro e desaprovação em face da estupidez universal. Confessemos: mesmo sem querer, sempre se acha algum pé onde sustentar uma implicância - uma birra - para com as ocorrências à volta. Segundo critérios exclusivos e mesmo contraditórios, o mundo vem-se apresentando como projeto necessitando de permanentes reparos.

E não usar sequer um único adereço nem portar ao menos um traço dessa senhora é, para quem costuma trazê-los sobre si, loucura manifesta, quando não indício certo de índole má. E com loucos e malévolos não há diálogo possível: simplesmente não entendem o porque de alguém ter de vestir-se de Ética, mesmo se apenas para constar. Pois há quem o faça como se usasse fantasia ou disfarce e, mesmo inconvincentes, são tolerados por seus iguais, sendo também prontamente reconhecidos por essa outra casta para a qual pôr sobre o corpo os sinais do seu pacto com tão respeitável senhora é condição primordial, orgânica mesmo.

Mas repudiam, esses puristas, antes de mais, o imbróglio de que são vítimas os embuçados quando vêm a público com os berloques variados e desacertados de personagens outras, cujas vidas são consagradas a parodiar grotescamente as maneiras de D. Ética. Trata-se dos cultores de d. Moral, nome este usado por multidão de senhoras, mais jovens do que a nobre e vetusta Ética, sendo algumas descendentes suas, abastardadas, é mister adiantar, mas arrogando-se privilégios de legitimidade.

Em verdade, hoje o sei, é projeto fadado a dissabores o de escapar incólume às influências dessas parodiadoras. Todos corremos o risco diário de adicionar um ou outro dos ornatos sugeridos por alguma d. Moral. Em primeiro lugar, por se apresentarem elas, em suas desatinadas imitações, como Ética, ela própria, apagando das rasas memórias de quem as admira o menor traço da existência desta última. Tornam-se influentes também por serem proficientes na técnica publicitária, inscrevendo seu nome em praticamente todos os escritos com que uns homens se aproveitam dos demais abaixo de si na escala do poder: sendo, como são, documentos envoltos na aura do sagrado, fazem-se conhecidos sem que jamais se os mirem, ou melhor, tendo-se os olhos postos no chão, somente a uns eleitos cabendo lê-los e referi-los, o que fazem segundo sua pessoal conveniência.

Mas como pode o leitor, assim admoestado e já desconcertado pelo persistente engano de tomar umas senhoras por outra ou por ignorar a existência desta, distinguir uma das demais, ou melhor, como pode identificar os adereços originais de D. Ética e preterir as imitações? Observe, leitor, que já o tomo por um purista, um cultor dos secretos ensinamentos dessa deusa originária, precipitado que sou, presumindo-o suficientemente estimulado por estes breves e sinuosos parágrafos. Se, então, é esse o seu caso, cuide, antes de mais, de manter distância das carantonhas e dos excessos de formalidade, mas também dos sorrisos exagerados e das gentilezas sem motivo. Em nosso perpétuo baile de carnaval é assim que costumam apresentar-se, em maioria, os adoradores das diversas Morais. São aspectos contraditórios, hei de concordar, mas são prova de como é vista a Ética nos quatro cantos do mundo. No momento, restrinjo-me a esses quatro atributos, ou ponho-o atarantado, leitor. A seu tempo, com o aparecer de novas crônicas, outros se mostrarão.

Assim, convido-o a aventurar seu equilíbrio pelas vias irreparáveis dessa maravilhosa cidade, costurando sobre o meu veículo de duas rodas, desgastado mas robustecido pelos desvãos incontornáveis dos caminhos, percursos repetidos alternando calçadas, saltando meios-fios, ameaças dos automóveis e imprecações de quem os dirige até alcançar a ambígua segurança das vias expressas das bicicletas apinhadas de passos em falso de caminhantes e desportistas de ocasião, de crianças sobre patins e ciclistas intempestivos. De quebra poderá colher na viagem a descrição de uma bela paisagem, uma inconfidência picante e até um tropeço na natureza humana. Trata-se da vida como é, ou parte dela: sem grandes promessas, pobre em certezas. E minhas palavras, longe de amenizá-la, podem torná-la ainda mais sinuosa, como o demonstram aqui. São seus a escolha e o risco de me seguir.

Rio, 23/1/07

Waldemar Reis

 
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