Um obstáculo inesperado
Uma observação preliminar: a Ética não é a bicicleta! Não pode ser, ou teríamos de admitir que o equilíbrio nos é dado pelo veículo, que por si mesmo necessita de nós, ciclistas, ou de apetrechos para se manter de pé. Se metáfora de algo, a bicicleta o seria do próprio mundo: é nele que precisamos manter o prumo, é ele que cai sobre nós ou nos derruba se não compensamos apropriadamente suas tendências. E quem nos auxilia nesse esforço não é senão D. Ética, conselheira exemplar, irreparável, pois toda Ética necessitada de reparos - já vimos isso no texto de abertura desta série - é na verdade uma Moral.
Creio, assim, haver respondido ao comentário do amigo AC e sua poética metáfora. Com certeza quis com ela corrigir o curso da que inventei (apressadamente, como já fiz notar), na qual reconheço haver nada de brilhante, sendo seu maior pecado, ao contrário da proposta por AC, o de carecer da desejada poesia. Mas se posso criticá-la por mirrado apelo estético, invoco a seu favor a precisão. Ela diz melhor da intenção de relatar o quanto me vem à cabeça quando trafego pelo labirinto de intolerância que vimos criando para nós à guisa de abrigo, a metrópole. Trata-se, o mais das vezes, de meros estalos sacados nos contratempos de decisões apressadas com vistas a evitar o pior. O pior para mim, o pior para outrem.
O que é o ciclista em hora de rush? E nos fins de semana? Em ambos e em quase todos os outros casos imagináveis é ninguém. Se está no meio da rua, empurram-no os automóveis para a calçada e aí os pedestres - não todos, é bem verdade e ainda bem - insistem em lhe obstar o caminho ou encaram-no como a um vagabundo ou mesmo fascínora. Para passar pela calçada, manda a lei, tem de apear-se. É justo, visto haver quem manobre mal seu veículo. E o que é um ciclista desmontado? Nada, igualmente: alguém empurrando uma bicicleta (andaria melhor não conduzindo nada com as mãos).
Tudo, entretanto, parece amenizar-se com a visão esperada da ciclovia. Então é só aguardar o sinal abrir e encontrar uma brecha desprezada ou ignorada pelos motoristas para atingir seu éden, pensa o ciclista, onde poderá dialogar com iguais (semelhantes, melhor dizendo) e finalmente desenvolver velocidade constante. Mas ainda tem de evitar o automóvel arremetendo-se sobre ele ao dobrar a esquina, umas hábeis pedaladas e... a ciclovia! Já não faz caso do monóxido de carbono descarregado da via lateral e imagina mesmo que lhe refresca a cara a brisa do mar. Tem alguma pressa, compromisso, mas um passo furtivo de uma senhora resfolegante - e entrada nuns quilos a mais - o força a desviar-se para a esquerda, onde não por acaso se aproxima outra bicicleta em sentido contrário (ou seria no mesmo sentido, tentando ultrapassá-lo?), de quem escapa numa manobra elástica para de imediato dar com o casal de corredores, mãos dadas, gordinhos e saltitantes, ocupando pouco mais de dois terços das pistas.
Ora, qual o lugar do ciclista nesse mundo? Nenhum! Não tem o status dum motorista, que possui carro por ter pressa de honrar suas obrigações. Tampouco é um pedestre, corredor ou não, que, bem ou mal, está fazendo algo importante para si, como pegar o taxi, o ônibus ou cuidar da saúde - até topar com a próxima maionese de batatas. Um ciclista só pode estar-se divertindo, passando o tempo, pois a bicicleta nada tem de um veículo sério: desconfortável ao sol, incoveniente na chuva, é útil apenas para perturbar a vida alheia.
Tudo isto tem um significado, mais grave do que aquele que permitimos ou costumamos admitir. Ele se apresenta quando confrontamos o mundo como é com aquele que, de sã consciência ou por puro desencargo da mesma, dizemos querer e, claro, fingimos construir. A bicicleta é um dos pontos ideais donde vislumbrar a natureza humana como se apresenta: um pouco elevado, o suficiente para observar sem tomar-se por deus, e em condição de fragilidade, pois nem todos sabem, ainda bem, que para desconcertar um ciclista é bastante afastá-lo para o lado com a mão. De pouco adianta insultá-lo ou contestá-lo: a isto ele já se habituou.
Rio, 25/1/07
Waldemar Reis
Creio, assim, haver respondido ao comentário do amigo AC e sua poética metáfora. Com certeza quis com ela corrigir o curso da que inventei (apressadamente, como já fiz notar), na qual reconheço haver nada de brilhante, sendo seu maior pecado, ao contrário da proposta por AC, o de carecer da desejada poesia. Mas se posso criticá-la por mirrado apelo estético, invoco a seu favor a precisão. Ela diz melhor da intenção de relatar o quanto me vem à cabeça quando trafego pelo labirinto de intolerância que vimos criando para nós à guisa de abrigo, a metrópole. Trata-se, o mais das vezes, de meros estalos sacados nos contratempos de decisões apressadas com vistas a evitar o pior. O pior para mim, o pior para outrem.
O que é o ciclista em hora de rush? E nos fins de semana? Em ambos e em quase todos os outros casos imagináveis é ninguém. Se está no meio da rua, empurram-no os automóveis para a calçada e aí os pedestres - não todos, é bem verdade e ainda bem - insistem em lhe obstar o caminho ou encaram-no como a um vagabundo ou mesmo fascínora. Para passar pela calçada, manda a lei, tem de apear-se. É justo, visto haver quem manobre mal seu veículo. E o que é um ciclista desmontado? Nada, igualmente: alguém empurrando uma bicicleta (andaria melhor não conduzindo nada com as mãos).
Tudo, entretanto, parece amenizar-se com a visão esperada da ciclovia. Então é só aguardar o sinal abrir e encontrar uma brecha desprezada ou ignorada pelos motoristas para atingir seu éden, pensa o ciclista, onde poderá dialogar com iguais (semelhantes, melhor dizendo) e finalmente desenvolver velocidade constante. Mas ainda tem de evitar o automóvel arremetendo-se sobre ele ao dobrar a esquina, umas hábeis pedaladas e... a ciclovia! Já não faz caso do monóxido de carbono descarregado da via lateral e imagina mesmo que lhe refresca a cara a brisa do mar. Tem alguma pressa, compromisso, mas um passo furtivo de uma senhora resfolegante - e entrada nuns quilos a mais - o força a desviar-se para a esquerda, onde não por acaso se aproxima outra bicicleta em sentido contrário (ou seria no mesmo sentido, tentando ultrapassá-lo?), de quem escapa numa manobra elástica para de imediato dar com o casal de corredores, mãos dadas, gordinhos e saltitantes, ocupando pouco mais de dois terços das pistas.
Ora, qual o lugar do ciclista nesse mundo? Nenhum! Não tem o status dum motorista, que possui carro por ter pressa de honrar suas obrigações. Tampouco é um pedestre, corredor ou não, que, bem ou mal, está fazendo algo importante para si, como pegar o taxi, o ônibus ou cuidar da saúde - até topar com a próxima maionese de batatas. Um ciclista só pode estar-se divertindo, passando o tempo, pois a bicicleta nada tem de um veículo sério: desconfortável ao sol, incoveniente na chuva, é útil apenas para perturbar a vida alheia.
Tudo isto tem um significado, mais grave do que aquele que permitimos ou costumamos admitir. Ele se apresenta quando confrontamos o mundo como é com aquele que, de sã consciência ou por puro desencargo da mesma, dizemos querer e, claro, fingimos construir. A bicicleta é um dos pontos ideais donde vislumbrar a natureza humana como se apresenta: um pouco elevado, o suficiente para observar sem tomar-se por deus, e em condição de fragilidade, pois nem todos sabem, ainda bem, que para desconcertar um ciclista é bastante afastá-lo para o lado com a mão. De pouco adianta insultá-lo ou contestá-lo: a isto ele já se habituou.
Rio, 25/1/07
Waldemar Reis